terça-feira, setembro 25, 2007

A Viagem da Esperança.

Olhou seu velho relógio de pulso: seis horas. O trem sairá dentro de quinze minutos, e ela ainda não tem certeza se fez a escolha certa. O que ainda a prende nesta cidade? Não há filhos, marido, amigos, nada. Ainda assim, o nó na garganta não desata.

Resolveu acender um cigarro enquanto esperava. Era seu único companheiro havia anos; porém, ironicamente, o que certamente a abandonaria da forma mais cruel possível. Não importava. Tudo que queria era estar longe desta cidade horrenda, desta gente acusadora, que tanto a maltratara. Através da fumaça, mantinha seus olhos fixos num ponto qualquer do assoalho imundo da estação, imaginando como seria sua vida se pudesse voltar atrás. Tudo teria sido diferente se ele não tivesse cruzado seu caminho.
Mas agora não há mais tempo: o trem já vai partir, e, entrando nele, todo sofrimento ficará para trás, pequeno como um grão de areia. Passou as mãos pelos cabelos, agora curtos. Cortou-os, com medo de ser reconhecida - apesar de saber que nunca passara de mais uma na multidão, sem nada de muito especial. Era como um cachorro de rua, que as pessoas só notam que vive quando este fica no caminho, incomodando.

Seis e dez. Quase na hora. Coloca a mão na bolsa enorme – porém vazia – e pega uma vez mais o maço de cigarros. Na dúvida, acende. Que se dane, não tem mais nada, mesmo. Olhando para os lados, imagina qual seria sua reação se o visse novamente, com os mesmos furiosos olhos de lince que persegue sua presa. Sabia que era impossível, mas o simples pensamento fazia seus ossos congelarem. Nunca mais teria de agüentar seu cheiro de lama e mulheres, nunca mais sua ignorância, sua impaciência, seus olhos. Como temia aqueles embriagados olhos verdes, sempre prestes a atacá-la sem piedade.

Mas agora é tempo de fugir. Pegar o primeiro trem e fugir, sem nunca mais ousar olhar para trás, sem nunca mais ousar lembrar de nada. Nada além dos olhos. Olhos marejados nos últimos minutos; o verde do mar que transborda. A fera, que morre.

Hora do recomeço: seis e quinze.

quinta-feira, setembro 13, 2007

Inverossímil.

“Pós Escrito ao Nome da Rosa” é o tipo do livro que engana. Pelo menos à mim, leitora mimada, que gosta de histórias, e não de histórias sobre como foram feitas as histórias. Mesmo assim, de pára-quedas, foi paixão às primeiras páginas – virtuais, pois, apesar de detestar ler no computador, meu bolso tem a mania de sempre falar mais alto que a ardência dos olhos.

É claro que escrever não tem fórmula, feliz ou infelizmente. Seria bem mais fácil se tivesse; porém, não seria tão desafiador e instigante, motivos que fazem desta batalha uma coisa tão inacreditavelmente libertadora.

Digo batalha, mas estou usando um ponto de vista completamente pessoal. Para os perfeccionistas, como eu, o ato de escrever pode se tornar uma atividade demasiada extensa e cansativa, pois o produto final nunca fica pronto. Sempre há o que lapidar; há sempre uma parte que poderia melhorar, se uma vírgula fosse retirada ou colocada (geralmente retirada, já que tenho verdadeira tara por vírgulas).

Queria mesmo é ser como Clarice, que não revisava nada do que escrevia. Para ela, depois do último ponto final, o texto não era mais mutável: estava morto. Não era mais dela, era de quem o lesse, com todas as frases dúbias e interpretações mil que este pudesse ter. Ou seja, já não era mais sua responsabilidade.

O estilo vomitado de idéias me atrai, pois não há a preocupação com beleza, sincronia, modelos. É como se fosse possível penetrar nos pensamentos do autor, e ser prontamente invadido pelo turbilhão de idéias que perpassa sua cabeça, sem censuras, ponderações ou qualquer coisa que o valha; é o mergulho no ser que escreve.

Voltando ao livro do Umberto Eco. Um trecho dele chamou a minha atenção. É exatamente isso que eu quero, este efeito envolvente que procuro quando escrevo:


“(...) Mas ao mesmo tempo eu queria, com todas as minhas forças, que se desenhasse uma figura de leitor que, superada a iniciação, se tornasse meu prisioneiro, ou melhor, prisioneiro do texto e pensasse não querer mais nada do que aquilo que o texto lhe oferecia. Um texto quer ser uma experiência de transformação para o próprio leitor. Você acha que quer sexo, e intrigas policiais em que no fim se descobre o culpado, e muita ação, mas ao mesmo tempo você se envergonha de aceitar uma venerável pacotilha, com mãos de mulher morta e ferreiros assassinos. Pois bem, eu vou lhe dar latim, poucas mulheres, teologia aos montes e sangue aos litros como no Grand Guignol, de forma que você diga “mas isso é falso, não aceito!”. E a essa altura, você já será meu, e experimentará o calafrio da infinita onipotência de Deus, que desfaz a ordem do mundo. E depois, se for honesto, perceberá a maneira como o atraí para a armadilha, porque, afinal, eu lhe dizia isso a cada passo, advertia-o claramente de que o estava arrastando para a danação, mas o interessante nos pactos com o diabo é que são firmados sabendo-se muito bem com quem se está tratando. Do contrário, por que ser premiado com o inferno?”


Pois toda história são várias histórias recontadas.