quarta-feira, novembro 07, 2007

Todos os dias, por volta das seis horas da manhã, o despertador sacudia-lhe o cérebro. Sofia acordou cambaleante, e lembrou-se de tudo que teria que fazer durante o dia. Ou melhor, lembrou-se de tudo que não poderia fazer durante o dia, pois tinha que ir ao cativeiro. “Maldito estágio”, pensou, enquanto, de súbito, um desespero tomou conta de seu ser: ainda era segunda-feira!

Como não tinha outro remédio, pegou sua bolsa e saiu. Mas onde estarão as malditas chaves? Em meio a uma procura insana, encontra-as. Dentro do aquário. Como foram parar ali, é uma questão a se pensar. Atrasada novamente, liga o carro. Durante uma magnífica “ré” a oitenta quilômetros por hora (exagero, claro), descobre o porquê das árvores plantadas entre as vagas dos estacionamentos: para evitar “rés” a oitenta quilômetros por hora. Amaldiçoou em pensamento cada muda de ipê, macieira, mangueira, enfim, resolveu amaldiçoar tudo que fosse verde de uma vez. O povo do Green Peace que venha pedir apoio, pra eles verem o que é bom.

No ônibus, espremida entre uma senhora muitíssimo bem nutrida e um rapaz que poderia perfeitamente ter saído de um filme de terror, calculou mentalmente quantos minutos chegaria atrasada desta vez. Era matemática pura: quanto mais minutos, mais papéis para cortar. Pelas suas contas, cortaria a Amazônia inteira.

Um engarrafamento de duas horas depois, ao chegar ao estágio, Sofia é recebida ainda no elevador por Cleonice, colega de trabalho.

_ Menina! Isso são horas? Você sabe que a Ana já tá querendo seu couro, né?

Se fosse possível escrever um eufemismo na testa de cada ser humano, o de Cleonice seria “bem-informada”. Indiscreta e sem nenhum pudor, era sempre a que espalhava novidades pela empresa.

_Falando nisso, sua bolsa é linda, viu? – concluiu a frase, sem esperar pela resposta.

Sofia sabia que ela queria ser sua amiga. Não tinha certeza ainda do por quê, mas sabia que queria distância. “Se ela pensa que vai me enrolar, está muito enganada”, pensou, enquanto ligava o computador. A grande vantagem de quem não tem auto-estima é que eles não acreditam em nada, e Sofia não era diferente: desconfiava de tudo e de todos, até que se prove o contrário.

Foi então que ouviu o berro. Imaginou uma fenda se abrindo no meio do escritório, e, em meio ao fogo do inferno e ao cheiro de enxofre sua chefe surgindo, segurando um imenso tridente em uma mão e incontáveis relatórios na outra, espalhando o choro e o ranger de dentes pelo mundo.

Cortou e colou etiquetas até mais ou menos sete horas, uma hora e meia a mais que seu expediente. Perdeu o ônibus das cinco, das seis e das seis e meia.

Novamente espremida - desta vez, entre um careca e a janela do ônibus - pensava durante o trajeto para casa o quanto ainda teria que trabalhar para pagar o conserto do carro. Lembrou do cheque especial do mês passado, daquele sapato na oferta im-per-dí-vel que parcelou em dez suaves prestações, da faculdade que iria aumentar (de novo) esse semestre. Enquanto a baba do careca escorria pelo seu ombro, pensou se o metrô não seria uma opção mais higiênica.


Chegou em casa e jogou os sapatos pelo chão. Seria capaz de dar o braço esquerdo e até um pouco do direito por uma cama quentinha. Pensou em fazer o jantar, mas optou pelo clássico manjar dos moradores solitários: mandou a dieta pro diabo e pediu uma pizza tamanho família, como recompensa pelo seu dia horroroso. E também para sobrar para o café da manhã do dia seguinte. "Segunda que vem eu recomeço com força total", decidiu, enquanto dava uma bocada na imensa fatia da pizza portuguesa, com tudo que tinha direito.

Sentiu um prazer indescritível, como se estar sozinha naquele momento fosse a melhor coisa do mundo. Lá não havia chefe, carro batido ou ônibus lotado com baba de careca: era a sua casa, seu habitat, onde a solidão era a única - e melhor - compania que poderia querer.






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