quarta-feira, maio 11, 2011

Descoberta



Olha, antes de qualquer coisa, quero deixar registrado que eu tenho plena consciência de que o que estou prestes a dizer é brega, mas sempre quis ser "descrita" por algum observador talentoso. Acho que é bem aquela conversa de "casa de ferreiro, espeto de pau": assim como a maior vontade de um fotógrafo é ser (bem) fotografado, um dos grandes desejos de quem trabalha com as palavras é saber quais seriam escolhidas para te descrever.

O sempre foda Xico Sá fez isso dia desses, com uma desconhecida na Avenida Paulista:

Consolação/Paraíso,17h43,São Paulo
Nem que sobre só uma no mundo, como é bonito uma mulher que fuma.

Uma mulher fumando.

Nem que seja aquela fumante bissexta, que dá uns tragos vez por outra, em uma viagem ao fim da noite. Com um drique e uma olhar borrado de maldade.

No episódio que acabo de testemunhar, ela desliza da escada rolante do metrô Consolação para a avenida Paulista. Ajeita o gorro do casaco verde-lodo para não tomar a leve chuvinha do fim da tarde. Está um pouco triste. Não apenas por habitar a sempre difícil segunda-feira; tampoco por estar no mundo a passeio, ela sabe das coisas.

Pelo mínimo que conheço de moça, há ali uma lágrima, umazinha, represada de algum embate mal-resolvido no final de semana. Na segundona carregamos o peso não do churrasco ou da massa, nunca da comilança. Carregamos a vida por quilo da intensidade de termos vividos mais juntos. Pernoites mais colados na cidade-dormitório. Durante a semana não há tempo nem para perguntar como foi seu dia.

Ela procura a lateral da banca de revista onde Kate Moss sob o vidro molhado acha que impera. Quanto engano. A anônima cria da nossa costela, daquelas paulistanas de olhos com corte rapidamente oriental e morenidade a sobrar na vista, pega o cigarro na bolsa. Coitada de Kate.

Como ela fumava, fuma. Se o prezado rapaz ou a estimada rapariga visitante deste blog carecerem de uma comparação com o cinema eu não citarei, desculpem, a Rita Hayworth. Nada desse clássico da tela que bafora.

Passo Hollywood e passo a Nouvelle Vague, pra citar duas escolas cinematográficas distintas que nos influenciaram com essa coisa de achar belo a mulher que fuma. Esqueço até a Anna Karina em “Vivre Sa Vie”, a mulher da minha vida no escuro.

Caso pudesse lembar alguém desse ramo seria a Uma Thurman com filtro mais lindamente melancólico. Esqueça. Era ela e só ela, a moça das 17h43 na avenida Paulista.

Tragos e perdições no juizo, chuto sobre a minha personagem desconhecida, como se fosse possível adivinhar pelo menos 10% naquela mulher que fuma.

Agora seus olhos marejam. Este cronista-voyeur finge que folheia a Vogue com a Kate Moss. Jornalismo comparado: a modelo que também amo pelo desacerto no mundo não teria autoridade estética sequer para amarrar os cadarços das botas desgastadas pela nossa costela anônima.

O celular (dela) toca. Já havia desligado o meu em respeito solene ao momento. Chego cada vez mais perto, no meu disfarce de leitor da Vogue. Uma lágrima leve como o sereno que caía faz uma rápida curva e escorre sobre aquele nariz grande.

-Eu também te amo –ela diz no celula. –Sim, eu aceito!

A esta altura do que despejavam olho e nuvem, este ouvidor-geral do coração denunciador das ruas já estava colado na nossa dublê de Uma. Sentia o confortável cheiro dos cabelos de uma mulher desconhecida -algas marinhas?

Estava tão perto da minha musa crepuscular do metrô que ouvia, ou viajava que ouvia, do outro lado da linha, o esfarrapado –nem por isso deixa de ser amoroso e sincero- pedido de desculpa de um também desconhecido e adorável vagabundo.

Ela desceu as mesmas escadas e seguiu rumo à estação Paraíso.

O normal em SP é o amor começar no Paraíso e acabar na Consolação, com ou sem baldeações ao longo do percurso. Às vezes, porém, ele faz o caminho de volta, como se o coração não pudesse perder a validade do Bilhete Único que logo logo expira e não dá tempo nem voltar para casa.

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